Psicodália 2009-10



Os paradigmas musicais vigentes e o Movimento Psicodália
A derrocada da indústria fonográfica tem suas razões em si própria, no seu mecanismo auto-destrutivo de lucros incessantes e banalização musical, expelindo para os guetos qualquer tentativa de música com uma proposta mais artística ou de livre expressão (com algumas exceções).  Mas também é fruto de uma crise criativa e um esgotamento quase que total das fórmulas exploradas pelos músicos, dos mais diversos estilos, durante quase toda a segunda metade do século XX, época em que a música popular (não erudita) realmente deu um salto de inventividade. Há uma necessidade quase que diária de se criarem novos “mitos”, novos alvos de culto para as massas, tendo em vista vendagens cada vez mais minguadas e uma cultura de descartabilidade geral na sociedade capitalista. A criação desses mitos, hoje, passa bem longe do quesito musical – um exército de fotógrafos está a serviço de futilidades construídas, flagrando escândalos cotidianos e atitudes fabricadas dos escolhidos da grande mídia, a fim de mantê-los constantemente nos meios de comunicação. Soma-se a isso a velocidade da internet, que tem sido ferramenta fundamental para despejar uma quantia absurda de inutilidade, através das redes de relacionamentos, e alimentar uma perversa cultura de celebridades. Cultura essa em que ser celébre é o grande cume do artista. Simplesmente ser famoso, não importa por qual motivo. Dentro desses motivos, o talento musical na hora de se expressar passa longe. Não há mais necessidade dele hoje, na “fabricação” de um novo talento (o que não significa que todos os artistas famosos ativos de hoje não são talentosos). A gravação de um disco atualmente é um investimento pequeno e totalmente automatizado – pode se corrigir desafinações por computador, tocar com instrumentos virtuais, utilizar bases já gravadas (surrupiadas de outras gravações – os samplers) dispensando a utilização de uma banda, recursos avançados já bem universalizados, enfim...tudo muito corrente. Como a música se tornou algo “fácil” de ser construído (e o que levou muita gente a tentar fazê-lo), o investimento para emplacar um artista hoje é astronômico e a concorrência é brutal. Não existe mais o artista só no aspecto “música”, a música passa obrigatoriamente pela imagem. O que é uma banda ou um cantor hoje sem um vídeo-clipe? Não existe nenhum artista de sucesso hoje que não tenha um vídeo-clipe ou no mínimo um DVD gravado. Muitas vezes, a música emplaca por causa do clipe (terreno este que tem se revelado numa explosão de criatividade) e da imagem de rostos bonitos, corpos sarados e posturas altamente sexualizadas. Isso em se tratando basicamente de música pop, música de larga ou largíssima difusão. 

Em se tratando de rock, que historicamente sempre foi um veículo de propagação da cultura dos jovens, a situação passa outros grandes percalços. Uma cultura de massas cada vez menos inteligente, no máximo medíocre, é o que tem servido de influência para a garotada que se aventura a tocar. As grandes referências do rock (seja pesado, progressivo, alternativo, punk) jazem num passado de no mínimo duas décadas ou são de bandas jurássicas que ainda sobrevivem. Dos anos 90 em diante quase nada de realmente relevante, realmente significativo, musical, novo ou revolucionário surgiu.  Tendo em vista a própria gigantez que o rock atingiu a partir dos anos 60, os músicos a partir de então (cada vez em maior número) passaram a não criar sua música baseada em elementos distintos como o blues, o jazz, o r&b, o country ou a música erudita. Passaram a construir o rock a partir da própria influência do rock já passado, o que foi gradativamente tornando o estilo limitado, repetitivo e auto-indulgente, como vemos hoje, de modo geral. Soma-se a isso o devastador efeito da cultura “do it yourself”, que praticamente declarou que dali em diante (fim dos anos 70) não se precisaria tocar bem para tocar rock, qualquer coisa serviria. A questão de se ter o rock já pronto como primeira influência e não como algo a ser construído e evoluído dentro do músico e a já citada ausência de boas referências atuais no rock cria uma valorizada e sufocante cultura de releituras, para a qual já se criou todo um aparato de produtores e espaços próprios, para bandas que sobem no palco para atuarem como uma “jukebox viva” pronta a agradar o público, com toda a sorte de “hits” roqueiros. O próprio rock em sua história passou por um período assim, num estágio de amadurecimento no começo dos anos 60, e ter isso tão em voga novamente hoje soa, no mínimo, como um retrocesso. 
 

Passado o período da hegemonia do rock enquanto música oficial da juventude (em meados dos anos 80), a indústria fonográfica passou a considerá-lo cada vez menos viável financeiramente. Daí surgiu a onda das bandas alternativas e independentes, que conseguiram construir cenários sólidos para manifestarem sua música. Estando pronta a parte mais difícil da história (se estabelecer e criar um público), a indústria fonográfica se voltava e investia nesses grupos, outrora independentes, e os colocava na grande mídia. Foi mais ou menos o que ocorreu com as bandas “grunges”.  Mas agora essa parece ser uma situação surreal de se ocorrer, porque há um total desmonte da indústria fonográfica em curso, e a indústria só aposta em algo com 99,9% de chance de estourar, ainda mais tendo em vista a imensa quantidade de bandas (muitas com bom nível musical) querendo um lugar ao sol.  
 

Numa ótica mais restrita, a visível falta de colaboração entre as bandas e os músicos torna dificílima a constituição de algum cenário, de qualquer estilo que seja, em qualquer lugar. Parece inacreditável hoje, numa perspectiva onde egos inflados imperam, imaginar que Jimi Hendrix estava na primeira fileira do Royal Albert Hall prestigiando Eric Clapton, no último show do Cream em 68. As pessoas hoje, dominadas pelo individualismo, só querem ser prestigiadas. 

E é no meio dessa balburdia que se insere o Movimento Psicodália. O total abolimento da cultura “cover” em um dado momento nos festivais foi uma ruptura e uma difícil construção, mas que com o tempo tomou forma e criou a identidade do festival, que hoje repercute. Contribuiu para isso também a presença de algumas bandas de maior reputação e com carreiras autorais já construídas, nos eventos, como o Patrulha Espaço, o Made in Brazil e o Blindagem (esta com maior reputação local no Paraná e arredores) nas edições mais antigas. Numa via de mão-dupla, as bandas cativando o público com suas próprias composições se aguçam ainda mais a investir na própria expressão e também geram o incentivo para que outras bandas com o próprio som busquem um espaço no festival. Vale citar que a integração com outras formas de arte (visuais, cênicas e plásticas) na temática psicodélica e contracultural (tudo feito com muito critério e bom gosto) também é fundamental para atrair um público seleto, não interessado apenas em música (ou em rock, no sentido mais restrito da palavra), vislumbrando um entendimento mais holístico e aberto. É clara uma co-evolução – as bandas (as que já se apresentaram mais de uma vez no festival) aperfeiçoando a técnica e criando com mais liberdade e qualidade e o público, sempre atento a novos sons, prestigiando o trabalho das bandas, adquirindo os CDs e acompanhando as bandas fora do festival e até cantando junto alguma de suas composições, numa atitude ativa e num movimento totalmente paralelo e alheio à grande mídia, no qual se pode dizer que certas bandas do Movimento já têm seu público cativo. Apesar de pequeno em termos de massa (cerca de 3 a 4 mil pessoas nas últimas edições), o público que se concentra no Psicodália tem a fundamental atuação da divulgação boca-a-boca, através do qual o movimento realmente cresce, se torna relevante culturamente e atrativo. Além das boas bandas selecionadas, com propostas interessantes fugindo do convencional do rock das FMs e MTV, a estrutura e todas as atividades que dão suporte aos festivais são grandes chamativos. Afinal, quem é que não quer chegar num local e se sentir bem, ouvindo boa música e se divertindo? 

A tônica do festival, em termos musicais e visuais, remete aos anos 60 e começo dos anos 70, uma época em que a premissa mais forte era exatamente a liberdade. Toda uma conjuntura propiciou que verdadeiras obras de artes musicais saíssem do minoritário e alcançasse amplitude mundial. Uma época de transformações na sociedade e de mudanças drásticas e velozes (basta comparar a imensa evolução do rock de 1964 a 1974). Justamente a essência do rock da época é o que o Psicodália consegue captar e imprimir – cabeças abertas no palco fazendo música para a audição de cabeças abertas na platéia. Uma mesma conjuntura propícia ao desenvolvimento de uma linguagem renovada de rock é o que o Psicodália cria, mesmo que ainda numa escala de micro-cosmos. E o que se vê é um espectro imenso de criatividade – há quem tempere música regional, outros puxam o jazz, outros o fuzz tropicalista, outros a densidade do rock progressivo ou quem faça o puro rock n’ roll revigorado pulsar com muitos hormônios. É nítida a musicalidade da moçada das bandas psicodálicas, com influências que vão além das mais óbvias e não somente calcadas no rock, e cuja força lhe garante eloqüência necessária para prender a atenção do público sem a necessidade de telões gigantescos no palco e outras papagaidas nas quais se debruça o show business atual. Eis um grande mérito – conseguer manter atenta uma platéia só com elementos humanos e instrumentos, numa cultura geral em que estamos acostumados a um constante bombardeamento de imagens. As parcerias e coletivismo, fundamentais para se alcançar objetivos comuns, são sentidas no ar durante os 4 dias do evento, seja nas conversas de camarim dos músicos, nas montagens das barracas nos campings ou nas filas para o almoço. 

O texto seguinte, que estampava a comunidade do Movimento, traduz muito bem a intenção:

"O Movimento Psicodália busca uma nova era na música, na arte em geral e na sociedade. Buscamos nos eventos realizados pelo movimento abrir espaço para uma arte livre, com qualidade e ideologia, buscando unir essa luta a modelos de vida que acreditamos serem vitais para a humanização das relações entre pessoas. Pacifismo, respeito, diversão, alegria, consciência ambiental e ecológica, liberdade de expressão e de 'ser' fazem parte dessa empreitada por um mundo melhor. Convidamos você a se juntar a nós, participando e contribuindo com sua presença nos eventos, para que cresçamos e possamos assim difundir um estilo de vida pelo qual acreditamos e lutamos.”

A música que ecoa dos redis psicodálicos quer ser a trilha para um movimento de mentes que realmente deseja concretizar alternativas, mesmo que não atingindo a sociedade como um todo, no mínimo que alcancem suas próprias existências. Vida longa ao Psicodália!

“Quero viver o inverso,

A vida transformada em um sonho.

Saído de casulos entre as árvores,

dão boas vindas ao jardim onírico.

É essa mania de tocar

Os pensamentos fúteis e uma ilusão de arte...

Desci do universo e tentei respirar

e vi que nem tudo que brilha é ouro.

Na poeira do passado, escrevo o futuro;

nem tão certo nem errado, só perdido no mundo
pois construir é imaginar
e tem que aprender a cair pra poder levantar.
Não quero nada de você;
minha casa é meu paletó.
Pois se o “homo tudo sapiens”
erramos, erramos e erramos
entre bichos e grilos, carrapatos e carrapichos,
ouvimos o vento soprar uma mensagem de amor
e o cheirinho do mato verde.
A loucura pura, cura
E a alegria vem.”
 
(Poema feito baseado em trechos de letras de músicas das bandas que tocaram no Festival Psicodália, com pequenas adaptações e inclusões do editor do texto. Foram utilizados trechos de letras das bandas O Sebbo, Trupe Sonora Casa de Orates, Bandinha di-da-dó, O Conto, Zé Trindade, Massahara, Cosmo Drah, Soul Barbeccue, Trem Fantasma, Plástico Lunar, Confraria da Costa, Mesa Girante, Sopa, Baratas Organolóides e Plá. )

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Resenha Coletiva – Psicodália 2009/2010
Por Ronaldo Rodrigues e Maíra Althoff


- Conheci o festival no boca a boca, através de amigos

- Através de amigos. Já tinha ido e me falaram muito bem, isso foi lá por 2006, eu acho...

- Com alguns amigos virtuais, numa comunidade do orkut.

- A aprovação unânime entre eles me motivou a ir.

- Sempre ouvia falar...

- Fui sozinha de ônibus de linha até Florianópolis e de lá peguei outro até Rio Negrinho. Na descida em Rio Negrinho conheci uma menina e um casal e fomos até a fazenda de táxi.

- Fomos de ônibus e carro. Sempre se encontra alguém perdido nessas rodoviárias, com as tranqueiras nas costas, indo pro mesmo lugar que você. Sai de São Paulo.

- Nosso pessoal se constituiu de umas 6 pessoas de Curitiba, e também 3 pessoas do Rio de Janeiro, e uma até de Belo Horizonte.

- A galera não parou um minuto. Já conhecia o pessoal todo da excursão.

- Fui em um misto de carona de pais + ônibus + carona com amigos.

- A viagem fora um pouco tumultuada, devido ao ônibus não ser dos melhores. Mas a gente tava tão feliz, que nem ligamos pra isso. Fiz muitos amigos na viagem.

- O que eu esperava era uma mega festa e eu recebi a melhor festa de todos os tempos.

- A curiosidade toma conta e a ansiedade idem, mais ou menos como sair da vida real e entrar na vida ideal...

- Sou muito ligado a música, e toda essa paz misturada com o magnífico som de várias bandas prometia muito pra mim.

- Uns meses antes eu passei a sonhar repetidas vezes como festival e a respirar o Psicodália.

- Já tinha ido uma vez e sabia que o negócio era bom.

- Vi pessoas de todas as idades por lá. O tipo de galera que vai ao festival é a galera da paz e do rock.

- Galera de bem, receptível, bonita e que aprecia e valoriza o trabalho das bandas independentes do Brasil.

- Não vi brigas, nem falta de educação, nem desrespeito a natureza, nem stress, etc. Pelo contrário...

- Vão pessoas apenas pra caírem de bêbadas, idealistas gerais, vegetarianos, hippies de verdade, hippies de mentira, músicos, velhos, novos, carecas, cabeludos, até animais!

- E foi lindo, lindo! Todos convivendo em paz total, sem brigas, sem discussões, respeito mútuo e sentimento de alegria vindo de todas as partes.

-O Psicodália é o evento onde existe o público mais receptivo do planeta, você chega lá sozinho e volta cheio de amizades pra toda vida.

- Cansei de escutar no "myspace" as músicas das bandas, quando a lista das confirmadas começou a ser divulgada.

- Mutantes, Pata de Elefante e Zé Trindade.

- O primeiro show do festival, com a Electric Trip, do RS, também foi demais.

- Casa de Orates também me surpreendeu, novamente.

- Plastico Lunar, Sopro Difuso, Pata de Elefante, Mutantes, Terreno Baldio, Casa de Orates.

- ... por cada uma ter uma identidade própria e boa instrumentação...

- Bandinha Di Da Dó, é a primeira que vem na minha cabeça.

- Todos os shows foram fantásticos e parecia existir uma sensação mútua de estar participando de algo histórico.

- Achei que a qualidade das bandas que se apresentaram no festival foi inestimável, de tão boa;

- Acordar ouvindo Donovan com a Rádio Kombi foi impagável.

- A musicalidade é incrível, as músicas são demais, desde a rádio até os shows. Puro deleite!

- Música? 100% de alegria garantida. 

- Trouxe lembranças "inanimadas", como por exemplo, sentimentos e sensações que eu gostaria que fossem diários.

- Trouxe a lembrança que quero mais.

- Muito rock desde às 10h00 da manhã, acampamento, violão, fogueira e grandes shows.

- Um dos melhores lugares em que já estive, em muitos aspectos, principalmente nos de pessoas, natureza e música.

- Só trago boas lembranças do dália, de tudo que aconteceu lá, durante os mágicos 5 dias, histórias para sempre, dos loucos e pirados que cada dia aprontavam coisas novas.

- As madrugadas no saloon, o Plá com seu violão, as crianças brincando, o cheiro de natureza, a chuva, as intermináveis fatias de pizzadália, os casais apaixonados, a tiroleza, as gritarias, o amor. Se forem lembranças físicas, trouxe CDs das bandas, camisetas, bolsa, muito mato grudado na saia...

- Olha, não sei se vai ficar na história, mas na minha história, com certeza ficará.

- Com certeza o Psicodalia 2009/2010 já está marcado nas páginas do rock.

- Com certeza, pra quem gosta já ficou na história.

- Conheci pessoas fantásticas, dancei, gargalhei, cantei, conversei, enfim.

- Amigos, irmãos, companheiros, amores.

- Talvez os veja só no próximo festival.

- Só indo no "festival psicodália" para saber/descobrir a sua magia.

- Estava sempre pra lá e pra cá, tamanha a quantidade de gente que eu conheci e curti.

- Pra mim, cada minutinho do festival foi inesquecível e superior.

- Um só? Vixi!

- Banho no rio... muito bom! Lavou a alma pro começo de 2010.

- Quando conseguimos reunir todos aqueles amigos que moram longe e só podem se encontrar num grande evento como esse. Era o último dia, hora de partir.

- A guitarra do Sérgio Dias!

- 5 dias muito mais que perfeitos, mágicos, maravilhosos com as melhores pessoas que conhecia ou passei a viver e conhecer.


Este texto foi feito baseado em diversos depoimentos dados por pessoas que participaram do festival Psicodália de ano novo 2009/2010. O objetivo é captar as impressões das pessoas que lá estiveram, desprendidas da idéia jornalística, tentando capturar um olhar mais completo do que foi o festival e torná-lo mais compreensível a quem não participou, ou ainda, futuramente, realçar a memória daqueles que estiveram presentes. Objetivamos capturar o espírito coletivo, pegando pessoas de diversos lugares, com culturas e opiniões diferentes, diversidade que mesmo longe da real diversidade de corações e mentes que lá estiveram, expressa o Psicodália como um acontecimento relevante seja no plano das experiências pessoais ou no plano da cultura e da arte de nosso país.
 

Participaram desta resenha coletiva: Bruna Rodriguez, Gabriel Good, Alan Carlos Silva, Manoel, Jean Michel Maciel, Gustavo Comeli, Sérgio Haiduk, José Henrique Benício, Maíra Althoff e Gabriel Faraco, a quem somos muito gratos!  



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